PATRIOTA VALENTE






Patriota valente
Publicado em: Correio da Bahia (Repórter) em 11 de Março de 2010


Lusitano abraça as causas da independência da Bahia e luta como brasileiro para libertar o país

Aquele homem não largava o calçado. E gostava mesmo de estar com ele em todas as boas brigas que arrumava, seja nas ruas da cidade, nas encruzilhadas do Recôncavo ou até mesmo na Bacia Cisplatina, então sob o domínio português, lá longe, bem perto de onde a torcida do Boca faz festas enlouquecedoras na capital argentina. É mais um daqueles casos de amor, precedido de paixão arrebatadora, de um forasteiro que se encanta pelo lugar visitado, sua gente, o clima, a guerra. A identificação era tamanha que muitos não acreditavam na sua origem lusitana.
"Duvidei, confesso, por longo tempo da sua nacionalidade. Fazia-o brasileiro e brasileiro da gemma, pois, ao pesquisar a história da nossa independência, não encontrei outro estrangeiro, ou melhor, outro reinícola que pela nossa emancipação política, pela nossa grandeza, pela nossa glória se batesse no mar com maior ardor, galhardia, enthusiasmo do que elle o fez", escreveu Lucas Alexandre Boiteux no seu Façanhas de João das Bottas (Marinheiro da Independência).
Sim, João Francisco de Oliveira ganhou a alcunha porque, em terra ou no mar, descalço jamais estava. E o pesado sapato era o companheiro inseparável no comando daquela frota incansável que combatia os teimosos portugueses em alto-mar ou nas águas tranquilas da sua baía de Todos os Santos. Com tantos ídolos e feitos bravios, a Independência da Bahia é um relato da história repleto de heróis nacionais. Maria Quitéria, Joana Angélica, General Pedro Labatut, corneteiro Lopes e os anônimos fazem da campanha de libertação de Portugal um dos episódios mais marcantes dos 507 anos de Brasil. Mas, assim como os acontecimentos travados por estas bandas não são conhecidos no país, João das Botas é um daqueles personagens que também não ganharam o destaque merecido. "Não se sabe muito sobre ele", atesta o professor e historiador Luís Henrique Dias Tavares, um dos principais especialistas sobre o tema. "Ele é um marinheiro português que adere à autoridade do príncipe dom Pedro e pelos seus conhecimentos instrui Cachoeira, Santo Amaro, São Francisco do Conde a armarem barcos", diz.
O vice-almirante Luiz Sérgio Silveira Costa estudou toda a bibliografia referente ao personagem e construiu o trabalho João das Botas — Herói da Independência. Oficial de Marinha que lutou contra as forças navais portuguesas na Baía de Todos os Santos. Narra, com detalhes, as conquistas do luso-brasileiro nas enseadas, canais e outras praias que fazem da ilha de Itaparica um dos locais mais bonitos do país.
Saveiros, canoas e barcos constituem a história da Baía de Todos os Santos. E foi com essas embarcações que, armados, foram decisivos na guerra. "Não vamos dizer que foram vencedores porque não sabemos até agora por que motivo a Armada Portuguesa foi tão temerosa para realizar de fato combates, com as condições que possuía, de grandes naus com muitos canhões, com uma força belicosa muito maior do que aqueles barquinhos", revelou Luís Henrique em entrevista à revista daFundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Homenageado pela Marinha do Brasil, João das Botas é nome de regata de saveiros que enfeita a Baía de Todos os Santos, sempre durante o Verão, com mais uma tentativa de preservação da embarcação mais popular daquela época. É também nome de rua no centro da cidade, no Canela, uma das ligações do tradicional bairro com o Campo Grande. E só.
Não existem grandes publicações sobre o tema. Nos livros que contam os fatos que levaram ao Dois de Julho de 1823, as guerras marítimas no entorno de Itaparica não são comentadas com a proporção da importância que tiveram para o desfecho final da guerra. Uma das exceções é A Ilha de Itaparica, de Ubaldo Osório, filho da terra, que dedica toda a publicação de 1942 para abordar fatos ocorridos na ilha desde os primeiros anos após o descobrimento do Brasil. Mas foi ainda nos primórdios da luta pela independência de Portugal, quando o movimento separatista ganhava força em alguns pontos da colônia, que Botas foi criando o mito de herói, participando dos conflitos necessários para a emancipação política do Brasil. O cenário é a ilha de Itaparica, a maior marítima do Brasil. No geral, perde apenas para as ilhas de Bananal e Marajó, que são fluviais. Ali, João das Botas foi referência no comando da resistência marítima daquele novo país que enfim poderia trilhar os seus caminhos com independência. Era contramestre do cais do Arsenal de Marinha da Bahia, ainda no princípio do século XIX. Passou para o cargo de Mestre da Casa das Velas do mesmo Arsenal, para logo em seguida exercer as funções de ajudante do patrão-mor, responsabilizando-se por todas as embarcações de pequeno porte, experiência que seria fundamental nas batalhas travadas contra as forças lusitanas capitaneadas pelo brigadeiro Ignácio Luiz Madeira de Melo. Com tanta vivência no mar, é alçado ao posto de Segundo-Tenente da Marinha Real Portuguesa.
É a partir daí que mergulha de vez na cena política. Conspira para derrubar a Junta Provisória que governava a Bahia e vai parar na cadeia. Mas os portugueses perdoam-no e ele retorna para a Bahia, onde vai fazer história. Em pouco tempo está comandando a frota de pequenos barcos adaptados para as batalhas neste grande lagamar do Atlântico Sul. Era a Flotilha Itaparicana, que se iniciou com o barco artilhado, denominado Pedro I e foi aumentando ao longo da campanha, alcançando um efetivo de quase 800 homens. "Em 7 de janeiro de 1823, a esquadra portuguesa, incomodada pela ação de uma flotilha de barcos que os baianos haviam organizado para esfaimar a guarnição da cidade, tentou um desembarque na ilha de Itaparica e foi repelida", escreveu o historiador Braz do Amaral em Ação da Bahia na Obra da Independência Nacional.
A Flotilha, para muitos, é considerada a primeira esquadra brasileira, precedendo a ação do Lord Alexander Thomas Cochrane, almirante especialmente contratado em 21 de março de 1823 para tornar efetivo o bloqueio determinado ao porto da Bahia. Assim, o navegador, escocês de nascimento, que já havia participado das lutas da Independência do Chile e do Peru, é quem chega para comandar a invasão final à Bahia vindo do Rio de Janeiro, utilizando-se dos navios carcomidos que trouxeram D. João VI ao país e aqui ficaram após o retorno do rei a Portugal. Era o embrião da nova Marinha Nacional. As lutas se sucedem até que no heroico Dois de Julho de 1823, a flotilha percebe que os lusitanos começam a se retirar e começa a persegui-los, em uma busca que só é encerrada próximo à barra do Rio Tejo, já às portas da capital portuguesa. Ao retornar para Salvador, João das Botas desfralda no Forte de São Marcelo, sob a salva de 21 tiros do próprio forte, a primeira bandeira brasileira em Salvador. Era a glória de uma luta que se arrastou por mais de dois anos. E, após aderir às forças que chegam da capital do país e mandar os malditos embora, Botas, reconhecido pelos seus atos, é mandado para a luta na Bacia Cisplatina, atual Uruguai. E lá, lutando fora de casa, também faz bonito e não desonra o nome da Bahia.



Nenhum comentário:

Postar um comentário